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segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Uma possível leitura existencial do conceito de transferência

A elaboração desta reflexão a respeito do conceito de transferência é resultado das discussões em grupo que tivemos ao longo de um ano nas reuniões clínicas da Psicoblue de Osasco, nas quais pudemos discutir este conceito teórico da abordagem psicanalítica, e articulá-la ao nosso trabalho clínico dentro da instituição Psicoblue. É importante primeiro esclarecer que a escolha do tema para esta reflexão diverge do que foi proposto ao grupo como eixo de trabalho. Nos foi proposto que discutíssemos a questão da transferência com foco na sua articulação com a instituição, e que relatássemos um caso clínico em que pudéssemos pensar como a instituição em que trabalhamos influencia e nos revela sentidos sobre a forma como o paciente se relaciona com a terapia, conosco e com o mundo, e como estes sentidos levantados pudessem ser relevantes para nosso trabalho clínico. Porém, ao pensar sobre esta temática proposta, me deparei com uma limitação que me impediu de realizar esta reflexão mais focada, pois constatei que havia de minha parte uma incompreensão conceitual que me impossibilitava qualquer elaboração mais aprofundada sobre este tema. Percebi que era necessário dar um passo atrás para entender melhor o conceito em si, em grande parte porque este conceito integra um corpo teórico distinto ao meu. Sua compreensão exigiria da minha parte uma tradução do seu sentido para uma linguagem mais próxima da abordagem existencial que me é mais familiar e com a qual conduzo minha prática clínica, uma vez que não possuo o conhecimento teórico e prático da psicanálise necessário para elaborar uma reflexão rigorosa deste conceito.
Tenho clareza de que a discussão deste trabalho é insuficiente a priori, pois reconheço a dificuldade e a precariedade de se comentar um conceito pertencente a uma abordagem terapêutica, neste caso a psicanálise, a partir de todo um outro referencial metodológico. Tal empreitada exigiria uma aproximação mais completa de uma abordagem em relação à outra. Rollo May realiza esta aproximação crítica, o que justifica que seja utilizado como referência neste trabalho. Esta discussão a seguir portanto se fará muito mais consistente a partir da leitura de seu livro A descoberta do ser.
Como entender o fenômeno da transferência sob a ótica da abordagem fenomenológico existencial?
Primeiramente é importante esclarecer as bases filosóficas sobre as quais a fenomenologia sustenta a sua prática. Nesta discussão, utilizarei como base o livro A descoberta do Ser, do analista existencial Rollo May. O que sustenta a terapêutica existencial é a compreensão do homem enquanto ser. Segundo May: “O caráter distinto da análise existencial é (...) estar ela relacionada com a ontologia, a ciência do ser, e com Dasein, a existência desse ser em particular sentado à frente do psicoterapeuta” (p. 99).
A preocupação da análise existencial e das correntes filosóficas existenciais em recolocar a questão ontológica como essencial para a compreensão do homem deve-se à constatação de estarmos perigosamente vivendo no interior do que Heidegger chamou de era do “esquecimento do Ser”. O pensamento metafísico, que permeou todo o pensamento no ocidente mais explicitamente desde Descartes, dicotomizou a relação do homem e seu mundo o dividindo em sujeito-objeto. Com isso, o homem ocidental passou a desconhecer o seu pertencimento ao mundo, transformando ele não mais em uma realidade vivida a partir de si, e condição para o ser, mas algo com o qual se relaciona de maneira indireta, por meio da dedução, do cálculo, do controle, da análise etc. Esta “alienação de si próprio em relação ao mundo” (p.131), como diz May, abre espaço para que as pessoas estabeleçam um tipo de comunicação “técnica” (131) com seus mundos; com as coisas, pessoas e consigo mesmo.
Assim, para os analistas existenciais, segundo May, “o mundo é uma estrutura de relacionamentos importantes no qual uma pessoa existe e de cujo plano participa” (p.135). Desta definição ampla da relação homem-mundo, três dimensões, ou mundos simultâneos, caracterizam a existência enquanto ser-no-mundo: Umwelt (mundo ao redor), Mitwelt (com o mundo) e Eigenwelt (mundo próprio). O primeiro sendo aquele que compartilhamos com todos os organismos, o mundo natural das necessidades “biológicas, impulsos, instintos”(p.139), também o das contingências, das determinações e condições nas quais o homem foi lançado e deve de alguma forma adaptar-se. É desta forma que se dá a relação do homem com os objetos, num ajustamento onde somente o homem é afetado. O segundo mundo “é o mundo dos inter-relacionamentos entre os seres humanos”(p.140). Neste mundo, incluímos o termo relacionamento, em que há um contato entre ambas as partes, e nesse contato ambas se afetam, experimentam mudanças ou transformações. Neste sentido, o ajustamento e adaptação, como o é em Umwelt, não é exato; se eles forem exigidos por alguma das partes, a outra estaria sendo tomada como objeto, ou instrumento. O terceiro mundo, ou Eigenwelt, é o mundo próprio, em que o homem experiencia a percepção de si mesmo. Ela não é subjetiva ou interior, como diz May, mas “a base sobre a qual nos relacionamos. É a percepção do que uma coisa qualquer no mundo significa para mim” (p. 142). Estas três dimensões existenciais do mundo são distintas, mas se condicionam sempre, são modos simultâneos. É justamente não levar em consideração esta simultaneidade dos modos de relação, de sobrevalorizar um em detrimento aos outros, que resultaria em uma perda de um senso de realidade numa experiência.
Colocados estes conceitos, podemos voltar nossa atenção para o conceito que nos propusemos a discutir, o da transferência. O relacionamento entre duas pessoas no consultório, mais especificamente entre o terapeuta e o paciente, para a psicanálise clássica é traduzido conceitualmente como transferência. Freud explica, em seu texto A dinâmica da transferência, que devemos compreender que “cada indivíduo, através da ação combinada de sua disposição inata e suas influências sofridas durante os primeiros anos, conseguiu um método específico próprio de conduzir-se na vida erótica – isto é, nas precondições para enamorar-se que estabelece, nos instintos que satisfaz e nos objetivos que determina a si mesmo no decurso daquela. Isso produz o que se poderia descrever como um clichê estereotípico (ou diversos deles), constantemente repetido – constantemente reimpresso – no decorrer da vida da pessoa, na medida em que as circunstâncias externas e a natureza dos objetos amorosos a ela acessíveis permitam, e que decerto não é inteiramente incapaz de mudar, frente a experiências recentes.” (p.133) O conceito de transferência formulado por Freud, assinala que há formas enrijecidas de relação que os pacientes revelam em terapia com seus terapeutas, repetindo com estes modos de se relacionar que sustentaram ou continuam sustentando com o pai, mãe, amante, filhos. May propõe entender este dinamismo muito bem observado por Freud, porém agora sobre bases ontológicas. Passamos a entender este fenômeno não somente como formas através das quais os impulsos eróticos se expressam, mas também como uma “distorção do contato” (p.21) , reflexo de um sentimento de ser enfraquecido ou pouco amadurecido.
Se em Mitwelt o contato entre os homens é sempre transformador e afeta ambos em maior e menor grau, esta transformação pode ser também bastante geradora de ansiedade, além de prazerosa também. Este contato real com o outro nos torna “abertos” e abala formas “seguras” e familiares de se ser, tornando este contato um risco em potencial, uma “morte” iminente. Quando este contato é distorcido, é exatamente esta transformação que o homem evita. Evita “soltar-se” por sentir-se ameaçado de alguma forma e no extremo, podendo sentir medo de perder-se. Levando adiante esta reflexão ao recolocá-la sobre bases existenciais, podemos entender que o que se processa entre o terapeuta e o paciente não é propriamente uma transferência de sentimentos que o paciente teve com relação ao pai, mãe ou esposa, mas que “em certas áreas [o paciente] não pode desenvolver além das formas limitadas e restritivas da experiência característica da infância” (p. 169).
Esta evitação pode ser vivida tanto por parte do paciente quanto do terapeuta, uma vez que ambos estão implicados na relação. Neste sentido, é prerrogativa da terapêutica fenomenológica que o terapeuta também participe dos sentimentos e do mundo do paciente, buscando, através de um contato genuíno com este, primeiramente a construção de uma confiança nesta relação para que o paciente possa inaugurar novas formas mais amadurecidas e menos rígidas de relação. Para que o paciente possa, cada vez mais, ampliar suas formas de comunicação com os outros. Refletir sobre o que se passa entre dois seres humanos é algo que May acredita termos nos isentado de conceituar, principalmente porque só percebemos a sua distorção, a transferência (p. 25).
Esta distorção do contato pode ser entendida por um lado, como uma sobrevalorização da dimensão Umwelt descrita acima, em detrimento às outras formas de relação do homem com seu mundo, que são simultâneas. Quando um paciente se relaciona com seu terapeuta de forma a tratá-lo como seu pai, mãe etc., há de certa maneira uma insistência para que o outro, no caso o terapeuta, ajuste-se a ele, de forma a “controlar” a situação, evitar o envolvimento e sustentar modos de ser familiares a ele e, portanto, seguros. Seria justamente tomar o outro como instrumento, ou objeto, quando ambos estão necessariamente em relação e em afeto mútuo. Ainda assim, a afirmação de que o paciente somente deseja “controlar” a relação se torna insuficiente se levarmos em consideração que junto a este controle, evidencia-se também uma necessidade de ser colocada em sua insistência em ser de tal forma. Esta necessidade é sempre dirigida ao outro na relação; neste caso, já não falamos mais somente em Umwelt, e sim na dimensão que sustenta as relações, ou Mitwelt, onde o que é dito e vivido por uma pessoa é sempre para alguém, para alguém que “ escute”. Esta resistência/insistência, marcada por um temor, dilui-se na medida em que o paciente experimenta sentir-se seguro de viver esta entrega a novidade do outro, e de si mesmo, e que o risco já não seja vivido como ameaça ao seu ser. Mais especificamente na terapia (mas não só), isto acontece na medida em que isto de que o paciente precisa, (aprovação, expressão da raiva, do medo) - e que por isso insiste - seja escutado, e vá com a ajuda do terapeuta adquirindo uma maior clareza de sentido. Esta insistência, ao lado de ser um controle, não seria assim uma necessidade de contato? Neste sentido, a resistência/insistência se mostra também ser uma postura legítima de defesa do paciente em resposta contra uma desvalorização ou indiferença frente a seu modo de ser. Uma outra implicação clínica da sobrevalorização de Umwelt, danosa ao contato necessário para a transformação do paciente (e do terapeuta também) seria o próprio terapeuta enxergar os pacientes como aqueles que buscam aos outros pela “(...)necessidade de se defrontarem com as exigências biológicas(...)”, transformando Mitwelt, num “epifenômeno”(p. 143) de Umwelt.
É importante salientar nesta discussão que todos nós, em algum momento, nos relacionamos com os outros como se fossem pai, mãe, marido etc. Quase tudo o que ocorre entre o terapeuta e seu paciente revela a “transferência”. Esta “transferência”, porém, está sempre acontecendo num relacionamento entre duas pessoas, e é justamente neste relacionamento que se abre a possibilidade do paciente experimentar o que faz, permitindo que esta experiência “se apodere dele”, se torne real, e dessa forma crie consistência e força suficiente para a mudança. Neste sentido, é fundamental na terapêutica existencial permitir o “tempo existencial” (p. 177) daquele paciente em particular, que a relação do paciente com o terapeuta seja o palco desta experimentação para que ele possa viver mais plenamente sua dimensão Eigenwelt, criando consciência de seus atos e escolhas.
A fenomenologia, segundo May, “não rejeita a validade dos dinamismos e o estudo dos padrões específicos de comportamento, quando considerados adequadamente, mas sustenta que os impulsos, ou dinamismos, seja qual for o nome que se prefira dar, só podem ser entendidos no contexto da estrutura da pessoa com quem estamos lidando.” (p.99) Assim é possível entender o fenômeno da transferência como resposta pessoal do paciente à dura luta de reconhecer sua “potentia” de transformação, que envolve a riqueza e delicadeza de relacionar-se com o outro, de relacionar-se com o novo e diferente, de si e do outro, e somente podendo ser agente próprio de sua superação através do contato real entre duas pessoas.
Bibliografia utilizada:
MAY, Rollo. A descoberta do ser: estudos sobre a psicologia existencial. Rio de Janeiro, Ed. Rocco, 2000

5 comentários:

  1. Por acaso cheguei a este blog e especificamente a este texto, por conta de uma procura mais clara e objetiva sobre o tema. Simplesmente, adorei a explicação, me ajudou e muito neste tema "transferência", sob o ponto de vista existencial.

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    1. Que bom Fernanda, fico feliz que minha reflexão tenha te ajudado. É impressionante como a internet (o que ela se propõe ser) promove né? Contatos que podem ser tão ricos ... Bjs Cris

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  2. Muito obrigada pelo esclarecimento parabéns.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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